Tópicos abordados:
- Anafilaxia;
- Mastócitos;
- Mecanismos da hipersensibilidade imediata;
- Os desafios
para o diagnóstico post-mortem de
anafilaxia;
-
Declaro o pêssego culpado!
“O coração humano não é um disco rígido que podemos
dissecar para perscrutar os segredos que encerram cada tecla pressionada ao
longo de uma vida”.
- Vincent Di
Maio & Ron Franscell, em O Segredo
dos Corpos.
A área da imunologia possui suma
importância para a compreensão dos mecanismos de “guerra” do corpo humano
contra patógenos (ou não-patógenos), tendo atuação crucial no desenvolvimento
de vacinas e outros recursos que diariamente salvam vidas. Mas, qual a sua
contribuição para as pessoas que não puderam ser salvas pelas ciências da
saúde?
A anafilaxia,
também conhecida por choque anafilático, trata-se de uma reação de
hipersensibilidade imediata que pode ser fatal. Ocorre após a exposição
repetida a antígenos presentes em alimentos, fármacos, injeções, picadas de
insetos ou absorvidos por epitélio (como os da pele e mucosa intestinal).1
Seus sintomas incluem a constrição das vias aéreas superiores e inferiores pela
formação de edemas, vasodilatação e hipotensão, bem como asfixia, taquicardia,
dispneia, arritmias, colapso cardiovascular e parada cardíaca.3 O
tratamento envolve a administração de epinefrina sistêmica, que reverte os
efeitos broncoconstritores e vasodilatadores que ocorrem, ou também
anti-histamínicos.1 Porém, a rápida evolução pode tornar a
possibilidade de tratamento inacessível, evoluindo à morte.
Figura 1. Mastócito e a sua degranulação. Imagem
por: Layla
Grazielly da Silva Cruz.
· Os anticorpos IgE como o oposto de proteção
Os personagens principais desta guerra são os mastócitos, células do sistema imune
presentes em epitélios e mucosas que são provenientes da medula óssea, e
responsáveis pelos sintomas das doenças alérgicas (Figura 1). Seus grânulos
citoplasmáticos são preenchidos por mediadores como citocinas, histamina e
proteases.1
Tudo começa com a exposição ao antígeno, seguida da
ligação de anticorpos IgE aos mastócitos, chamada sensibilização, que
fornece o reconhecimento de antígeno para reações de hipersensibilidade
imediata.1 As células T auxiliares (helper) CD4+ do subgrupo TH2 estimulam a
produção de anticorpos IgE para mastócitos, e estabelecida uma ligação, os
mastócitos são ativados ao serem expostos novamente ao antígeno e liberam os
seus mediadores, cujos induzem o aumento da permeabilidade vascular, contração
do músculo liso brônquico e visceral e vasodilatação.1 Todo este
processo está ilustrado na figura 2.
Ou seja, o alérgeno torna os leitos
vasculares do corpo acessíveis para os mediadores liberados. A triptase é uma protease exclusiva dos
mastócitos pré-formada e armazenada nos grânulos que induz lesão tecidual, e
quando detectada em fluidos biológicos, indica ativação de tais células, já que
sua resposta biológica inclui a degranulação. 1
Figura 2. Sequência de eventos nas reações de
hipersensibilidade. Abbas (2011).
·
Os desafios para o
diagnóstico post-mortem de anafilaxia
A epidemiologia da mortalidade causada por reações anafiláticas
possui uma avaliação prejudicada pela falta de exames para diagnóstico, havendo
somente a dosagem de triptase.4 Porém, mesmo que essa enzima seja
encontrada em altas concentrações por estudos de mortes relacionados com
choques anafiláticos, ela começa a voltar aos seus valores basais em cerca de
6h após o início da reação alérgica.3 Os achados necroscópicos mais
comuns são visualizados nas vias respiratórias pela presença de edemas,
secreção brônquica mucoide, lúmen dos bronquíolos com tampão de muco e enfisema
pulmonar.3 Pode também ocorrer a congestão de fígado e baço, mas a
ausência de todos esses sinais macroscópicos não exclui a possibilidade de
anafilaxia: por ser uma reação rápida, talvez não haja tempo suficiente para o
surgimento de sinais característicos.3
A
exposição ao alérgeno pode ser acidental ou proposital.5 Os casos
acidentais mais abundantes envolvem fármacos e erro médico, sendo anafilaxia a
causa mais alegada de morte em cirurgias.3 Um caso notável de
exposição proposital envolve um homem albanês de 30 anos, condenado e preso em
Milão por porte de drogas, que foi encontrado morto em sua cela, com restos de
pêssego ao seu lado e um bilhete no bolso. “Estou dando um fim nisso! Sou alérgico... Comi algo que eu
sei que irá me matar...”. A necropsia revelou congestão hepática,
pulmonar e renal, bem como sangue e muco nos lúmens traqueal e bronquial, mas
não evidenciou a presença de edemas ou reações epiteliais características de
reações alérgicas.5 Como a causa
mortis ainda não se tornara clara, os documentos da vítima foram
investigados, mas não abordavam idealizações suicidas nas avaliações
psicológicas, menções a alergias alimentares, nem tratamento farmacológico em
execução, somente que era um dependente químico com histórico de ataques de
asma.5
Foi
somente através de exames sorológicos, toxicológicos, histológicos e
imunohistoquímicos que a suspeita de anafilaxia tornara-se maior. Testes post-mortem revelaram uma concentração
de IgE elevada no sangue da vítima, e a triptase excedia os valores de
referência para indivíduos saudáveis (Tabela 1). Drogas ilícitas e álcool não foram
encontrados no corpo da vítima, mas sim uma presença massiva no conteúdo
gástrico de ácido salicílico, substância presente em pêssegos. O lado direito
da glote da vítima estava afetado por infiltrado celular inflamatório crônico
moderado, havia congestão e dilatação vascular, e foram identificadas células
consistentes à estrutura de mastócitos sem grânulos, bem como grânulos no
tecido conectivo subepitelial entre as fibras musculares. O conjunto desses
fatores, mesmo que circunstanciais, são consistentes à conclusão de que houve
uma reação alérgica, e assim, a morte da vítima foi atribuída à causa de
anafilaxia.5
|
Adultos saudáveis
|
Vítima
|
Anticorpos IgE
|
< 100 kU/l
|
154 kU/l
|
Triptase
sérica
|
5,6 - 9,8 μg /l
|
15,7 μg/l
|
Tabela 01: Valores de
referência e resultados obtidos nos exames. Fonte: Tambuzzi et al. (2021).
Dentre os exames imunohistoquímicos, a dosagem
dos níveis de triptase é um dos mais seguros, mas não o suficiente: seus altos
níveis no organismo também podem ocorrer em casos de asfixia, mastocitose
sistêmica e intoxicação por heroína, por exemplo.5 Nesse cenário,
até para patologistas forenses torna-se difícil a identificação da anafilaxia
letal, sendo necessário um quebra cabeça com várias peças (achados
circunstanciais) formando uma única imagem (conclusões coerentes). Usualmente,
é através da exclusão de outras possibilidades que a anafilaxia é considerada.6
É como
se os mastócitos fossem um bolo formigueiro, e a triptase
os granulados: ao comer, o consumidor tem granulado em seu
conteúdo estomacal. Mas, como saber se aquele granulado realmente veio
de um bolo formigueiro ou não de um brigadeiro, por exemplo?
Pode-se investigar a falta da fatia do bolo ou do brigadeiro na
casa do indivíduo. São conclusões ainda
não definitivas, somente suficientes para traçar um caminho de presunção do que
houvera acontecido.
Referências
Bibliográficas
1. 1. Abbas A. K., Lichtman A.H., Pillai S.
Imunologia Celular & Molecular – 7ª edição - Ed. Elsevier. Rio de Janeiro.
2011. p. 425-429, 439-440.
2. 2. Del Duca F, Manetti AC,
Maiese A, Napoletano G, Ghamlouch A, Pascale N, Giorgio B, Paola F, Russa R.
Death Due to Anaphylactic Reaction: The Role of the Forensic Pathologist in an
Accurate Postmortem Diagnosis. Medicina
(Kaunas). 2023 Dec 15;59(12):2184. doi: 10.3390/medicina59122184. PMID:
38138287; PMCID: PMC10744436. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38138287/ . Acesso em: 01 jun 2024.
3. 3. França, Genival Veloso de. Medicina legal - 11°
edição - Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017. ISBN: 978-85-277-3227-7. p.
1492-1494 (pdf).
4. 4. Silva EGM, Castro FFM. Epidemiologia da
anafilaxia. Braz J Allergy Immunol. 2014;2(1):21-27. Disponível em:
http://aaai-asbai.org.br/detalhe_artigo.asp?id=680 . Acesso em: 01 jun 2024.
5. 5. Tambuzzi, S., Gentile, G., Boracchi, M. et al.
Postmortem diagnostics of assumed suicidal food anaphylaxis in prison: a unique
case of anaphylactic death due to peach ingestion. Forensic Sci Med Pathol 17, 449–455 (2021).
https://doi.org/10.1007/s12024-021-00373-1 . Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12024-021-00373-1?fromPaywallRec=true#citeas . Acesso em: 01 jun 2024.
6. 6. Wang
X, Yin C, Su X, Su M. Reliable Postmortem Molecular Diagnosis of Anaphylaxis:
Co-localization of Mast Cell Degranulation and Immunoglobulin E in Allergic
Throat Tissues. Am J Forensic Med Pathol. 2020 Dec;41(4):249-258. doi:
10.1097/PAF.0000000000000572. PMID: 32568883; PMCID: PMC7668346. Disponível
em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7668346/ . Acesso em 01 jun
2024.
Texto por: Layla Grazielly da
Silva Cruz
Revisão técnica: Diego Moura Tanajura