terça-feira, 20 de agosto de 2024

O menino da bolha – Parte 3 de 3

 

Este texto é uma mera transcrição de uma trilogia de posts que fizeram muito sucesso no início do @imuno_News lá no Instagram

Veja aqui o post original.





São perguntas difíceis e reflexivas, mas para um menino não era opção de escolha e abrir mão de tudo isso era uma necessidade para viver!


David Phillip Vetter, mais conhecido como o "menino da bolha", nasceu em 21 de setembro de 1971, no Texas, Estados Unidos. Ele tinha uma imunodeficiência
  rara, conhecida como SCID. Por conta disso, praticamente não tinha sistema imune funcional. Coisas simples, como receber um beijo da mãe ou um abraço, era fatal para ele.

Com apenas 20 segundos de vida, David foi colocado dentro de uma bolha de plástico, onde viveu por 12 anos‼️
Até hoje, ele é o maior sobrevivente da SCID entre os não tratados. Tudo isso, por conta do ambiente estéril dentro da bolha, que o isolava do mundo externo.

Normalmente, pacientes não tratados com SCID não chegam a completar um ano de vida (veja aqui o último
 texto que falo sobre os aspectos imunológicos da SCID).





Tudo que era colocado dentro da bolha deveria ser esterilizado. Suas bebidas, comidas, roupas, brinquedos e até sua TV passavam por esse processo antes de entrar na bolha. A maior vontade dele era poder tomar uma simples Coca-Cola. Entretanto, o processo de esterilização acabava por mudar o gosto da bebida e essa vontade não pôde ser realizada.


Aos seis anos, David deu os seus primeiros passos fora da bolha, utilizando um traje espacial feito sob medida para ele pela NASA. Para se ter uma ideia da complexidade de sair da bolha e vestir o traje espacial, era preciso seguir 52 etapas para manter o ambiente estéril.  Graças ao traje espacial, mãe e filho puderam se abraçar pela primeira vez.

Em 1983, seus médicos tentaram uma nova técnica de transplante de medula óssea, que permitia o procedimento entre doadores não totalmente compatíveis. A medula foi doada pela sua irmã. Poucos meses depois de receber o transplante, David adoeceu pela primeira vez e teve que ser retirado da bolha para tratamento. Neste momento, sua mãe pôde tocá-lo pela primeira vez.

Quatro meses depois, David faleceu de Linfoma de Burkitt. O câncer foi causado pelo vírus Epstein-Barr que estava dormente nas células doadas pela sua irmã.


O menino da bolha – Parte1 de 3

O menino da bolha – Parte2 de 3


Referências

RENNIE, Drummond. 'Bubble Boy'. JAMA, v. 253, n. 1, p. 78-80, 1985.


https://www.nytimes.com/2015/12/07/us/the-boy-in-the-bubble-moved-a-world-he-couldnt-touch.html


https://www.cbsnews.com/pictures/bubble-boy-40-years-later-look-back-at-heartbreaking-case/2/





quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Diagnóstico post-mortem de anafilaxia: declaro o pêssego culpado!

  Tópicos abordados:

 

- Anafilaxia;

- Mastócitos;

- Mecanismos da hipersensibilidade imediata;

- Os desafios para o diagnóstico post-mortem de anafilaxia;

- Declaro o pêssego culpado!


“O coração humano não é um disco rígido que podemos dissecar para perscrutar os segredos que encerram cada tecla pressionada ao longo de uma vida”.

 - Vincent Di Maio & Ron Franscell, em O Segredo dos Corpos.


A área da imunologia possui suma importância para a compreensão dos mecanismos de “guerra” do corpo humano contra patógenos (ou não-patógenos), tendo atuação crucial no desenvolvimento de vacinas e outros recursos que diariamente salvam vidas. Mas, qual a sua contribuição para as pessoas que não puderam ser salvas pelas ciências da saúde?

A anafilaxia, também conhecida por choque anafilático, trata-se de uma reação de hipersensibilidade imediata que pode ser fatal. Ocorre após a exposição repetida a antígenos presentes em alimentos, fármacos, injeções, picadas de insetos ou absorvidos por epitélio (como os da pele e mucosa intestinal).1 Seus sintomas incluem a constrição das vias aéreas superiores e inferiores pela formação de edemas, vasodilatação e hipotensão, bem como asfixia, taquicardia, dispneia, arritmias, colapso cardiovascular e parada cardíaca.3 O tratamento envolve a administração de epinefrina sistêmica, que reverte os efeitos broncoconstritores e vasodilatadores que ocorrem, ou também anti-histamínicos.1 Porém, a rápida evolução pode tornar a possibilidade de tratamento inacessível, evoluindo à morte.

Figura 1. Mastócito e a sua degranulação.  Imagem por: Layla Grazielly da Silva Cruz.


·       Os anticorpos IgE como o oposto de proteção


Os personagens principais desta guerra são os mastócitos, células do sistema imune presentes em epitélios e mucosas que são provenientes da medula óssea, e responsáveis pelos sintomas das doenças alérgicas (Figura 1). Seus grânulos citoplasmáticos são preenchidos por mediadores como citocinas, histamina e proteases.1

Tudo começa com a exposição ao antígeno, seguida da ligação de anticorpos IgE aos mastócitos, chamada sensibilização, que fornece o reconhecimento de antígeno para reações de hipersensibilidade imediata.1 As células T auxiliares (helper) CD4+ do subgrupo TH2 estimulam a produção de anticorpos IgE para mastócitos, e estabelecida uma ligação, os mastócitos são ativados ao serem expostos novamente ao antígeno e liberam os seus mediadores, cujos induzem o aumento da permeabilidade vascular, contração do músculo liso brônquico e visceral e vasodilatação.1 Todo este processo está ilustrado na figura 2.

 Ou seja, o alérgeno torna os leitos vasculares do corpo acessíveis para os mediadores liberados. A triptase é uma protease exclusiva dos mastócitos pré-formada e armazenada nos grânulos que induz lesão tecidual, e quando detectada em fluidos biológicos, indica ativação de tais células, já que sua resposta biológica inclui a degranulação. 1


Figura 2. Sequência de eventos nas reações de hipersensibilidade. Abbas (2011).


·       Os desafios para o diagnóstico post-mortem de anafilaxia


A epidemiologia da mortalidade causada por reações anafiláticas possui uma avaliação prejudicada pela falta de exames para diagnóstico, havendo somente a dosagem de triptase.4 Porém, mesmo que essa enzima seja encontrada em altas concentrações por estudos de mortes relacionados com choques anafiláticos, ela começa a voltar aos seus valores basais em cerca de 6h após o início da reação alérgica.3 Os achados necroscópicos mais comuns são visualizados nas vias respiratórias pela presença de edemas, secreção brônquica mucoide, lúmen dos bronquíolos com tampão de muco e enfisema pulmonar.3 Pode também ocorrer a congestão de fígado e baço, mas a ausência de todos esses sinais macroscópicos não exclui a possibilidade de anafilaxia: por ser uma reação rápida, talvez não haja tempo suficiente para o surgimento de sinais característicos.3

            A exposição ao alérgeno pode ser acidental ou proposital.5 Os casos acidentais mais abundantes envolvem fármacos e erro médico, sendo anafilaxia a causa mais alegada de morte em cirurgias.3 Um caso notável de exposição proposital envolve um homem albanês de 30 anos, condenado e preso em Milão por porte de drogas, que foi encontrado morto em sua cela, com restos de pêssego ao seu lado e um bilhete no bolso. “Estou dando um fim nisso! Sou alérgico... Comi algo que eu sei que irá me matar...”. A necropsia revelou congestão hepática, pulmonar e renal, bem como sangue e muco nos lúmens traqueal e bronquial, mas não evidenciou a presença de edemas ou reações epiteliais características de reações alérgicas.5 Como a causa mortis ainda não se tornara clara, os documentos da vítima foram investigados, mas não abordavam idealizações suicidas nas avaliações psicológicas, menções a alergias alimentares, nem tratamento farmacológico em execução, somente que era um dependente químico com histórico de ataques de asma.5

 

 Foi somente através de exames sorológicos, toxicológicos, histológicos e imunohistoquímicos que a suspeita de anafilaxia tornara-se maior. Testes post-mortem revelaram uma concentração de IgE elevada no sangue da vítima, e a triptase excedia os valores de referência para indivíduos saudáveis (Tabela 1). Drogas ilícitas e álcool não foram encontrados no corpo da vítima, mas sim uma presença massiva no conteúdo gástrico de ácido salicílico, substância presente em pêssegos. O lado direito da glote da vítima estava afetado por infiltrado celular inflamatório crônico moderado, havia congestão e dilatação vascular, e foram identificadas células consistentes à estrutura de mastócitos sem grânulos, bem como grânulos no tecido conectivo subepitelial entre as fibras musculares. O conjunto desses fatores, mesmo que circunstanciais, são consistentes à conclusão de que houve uma reação alérgica, e assim, a morte da vítima foi atribuída à causa de anafilaxia.5


 

Adultos saudáveis

Vítima

Anticorpos IgE

< 100 kU/l 

154 kU/l

Triptase sérica

5,6 - 9,8 μg /l

15,7 μg/l

Tabela 01: Valores de referência e resultados obtidos nos exames. Fonte: Tambuzzi et al. (2021).


Dentre os exames imunohistoquímicos, a dosagem dos níveis de triptase é um dos mais seguros, mas não o suficiente: seus altos níveis no organismo também podem ocorrer em casos de asfixia, mastocitose sistêmica e intoxicação por heroína, por exemplo.5 Nesse cenário, até para patologistas forenses torna-se difícil a identificação da anafilaxia letal, sendo necessário um quebra cabeça com várias peças (achados circunstanciais) formando uma única imagem (conclusões coerentes). Usualmente, é através da exclusão de outras possibilidades que a anafilaxia é considerada.6

 

É como se os mastócitos fossem um bolo formigueiro, e a triptase os granulados: ao comer, o consumidor tem granulado em seu conteúdo estomacal. Mas, como saber se aquele granulado realmente veio de um bolo formigueiro ou não de um brigadeiro, por exemplo? Pode-se investigar a falta da fatia do bolo ou do brigadeiro na casa do indivíduo. São conclusões ainda não definitivas, somente suficientes para traçar um caminho de presunção do que houvera acontecido.


Referências Bibliográficas

1.     1. Abbas A. K., Lichtman A.H., Pillai S. Imunologia Celular & Molecular – 7ª edição - Ed. Elsevier. Rio de Janeiro. 2011. p. 425-429, 439-440.

2.     2. Del Duca F, Manetti AC, Maiese A, Napoletano G, Ghamlouch A, Pascale N, Giorgio B, Paola F, Russa R. Death Due to Anaphylactic Reaction: The Role of the Forensic Pathologist in an Accurate Postmortem Diagnosis. Medicina (Kaunas). 2023 Dec 15;59(12):2184. doi: 10.3390/medicina59122184. PMID: 38138287; PMCID: PMC10744436. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38138287/ . Acesso em: 01 jun 2024.

3.    3. França, Genival Veloso de. Medicina legal - 11° edição - Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017. ISBN: 978-85-277-3227-7. p. 1492-1494 (pdf).

4.     4. Silva EGM, Castro FFM. Epidemiologia da anafilaxia. Braz J Allergy Immunol. 2014;2(1):21-27. Disponível em: http://aaai-asbai.org.br/detalhe_artigo.asp?id=680 . Acesso em: 01 jun 2024.

5.     5. Tambuzzi, S., Gentile, G., Boracchi, M. et al. Postmortem diagnostics of assumed suicidal food anaphylaxis in prison: a unique case of anaphylactic death due to peach ingestion. Forensic Sci Med Pathol 17, 449–455 (2021). https://doi.org/10.1007/s12024-021-00373-1 . Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12024-021-00373-1?fromPaywallRec=true#citeas . Acesso em: 01 jun 2024.

6.     6. Wang X, Yin C, Su X, Su M. Reliable Postmortem Molecular Diagnosis of Anaphylaxis: Co-localization of Mast Cell Degranulation and Immunoglobulin E in Allergic Throat Tissues. Am J Forensic Med Pathol. 2020 Dec;41(4):249-258. doi: 10.1097/PAF.0000000000000572. PMID: 32568883; PMCID: PMC7668346. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7668346/ . Acesso em 01 jun 2024.



Texto por: Layla Grazielly da Silva Cruz

 Revisão técnica: Diego Moura Tanajura 



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